sábado, 19 de maio de 2012

Um século da Lenda da Imembuí

19/05/2012 | N° 3146 - Jornal Diário de Santa Maria
O conto de Cezimba Jaques e as ilustrações de Eduardo Trevisan, que estão reunidas em um painel na reitoria da UFSM ganham as páginas da revista MIX deste fim de semana. Em 2012, a lenda da filha da água, a Imembuí, completa 100 anos de sua publicação em livro. Em comemoração aos 154 anos da emancipação política de Santa Maria, contamos a polêmica que existe no meio literário local sobre este conto/lenda que aborda o romance entre a índia e o branco Morotin. No MIX, você também confere um artigo sobre o relacionamento entre os animais, tidos como os melhores amigos do homem, e seus donos.

Um século de romance

É com esses versos que o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, escritor e jornalista Humberto Gabbi Zanatta apresenta às crianças a Lenda de Imembuí, no livro Imembuy em Versos (2009), inspirado no conto do escritor santa-mariense Cezimbra Jacques. Em forma de poesia, ele começa a explicar algo que, muitas vezes, é difícil de fazer até os adultos entenderem: a origem lendária de Santa Maria não passa de um conto, ou seja, nunca foi verdadeiramente uma lenda – narrativa baseada na tradição popular e com elementos fantásticos em sua estrutura, como é o caso do Negrinho do Pastoreio. A cidade completou seus 154 anos de emancipação na última quinta-feira. Já a narrativa criada por Jacques, contando sobre a bela índia Imembuí que viveu uma história amor com o homem branco Rodrigues, mais tarde batizado pelos minuanos de Morotin, só foi publicada pela primeira vez em um jornal em 1910 e em um livro em 1912. A data do livro é tida oficialmente como a de aniversário da lenda. Assim, neste ano, o conto completa seu centenário. Um marco para Santa Maria onde, a partir da ficção, surgiram nomes de empreendimentos locais como uma televisão, a TV Imembuí (hoje RBS TV), uma rádio (Imembuí), hotéis (Morotin e Itaimbé), o principal parque da cidade (Itaimbé), entre outros.

Enquanto os documentos históricos dão conta que Santa Maria surgiu a partir de um acampamento militar, a lenda é bem mais romântica. Ela fala da linda índia Imembuy (cujo nome significa “filha da água”), que era filha do cacique de uma tribo minuano que vivia nas margens do arroio Taimbé (hoje Itaimbé). Certo dia, em um confronto entre índios e bandeirantes, o branco Rodrigues foi capturado e feito prisioneiro na aldeia. Imembuy e Rodrigues se apaixonaram. O homem branco, então, passou a fazer parte da tribo e foi batizado de Morotin. Com a permissão do cacique, Imembuy e Morotin se casaram. O primeiro filho do casal, José, teria sido o primeiro santa-mariense.

– O conto foi publicado no livro Assuntos do Rio Grande do Sul em 1912. Ele só foi tratado como lenda por João Belém, em 1933, na obra História do Município de Santa Maria. É a única ficção escrita pelo Cezimbra Jacques. Os outros escritos dele são estudos antropológicos e sociais. Acredito que ele não quis forjar uma lenda sobre a cidade e, sim, criar uma história ficcional sobre a sua origem. Porém, João Belém pegou esse texto, deu qualidade literária, transformou em lenda e apagou o seu criador, sem citá-lo em sua obra – afirma o escritor, pró-reitor de Graduação da UFSM e cronista do Diário, Orlando Fonseca, que foi um pioneiro no estudo acadêmico da Lenda de Imembuí.

Lenda serviu de inspiração
 

Apesar de a lenda ter servido de inspiração a artistas como o santa-mariense Eduardo Trevisan (1920-1983), que na década de 50 desenhou as obras que ilustram a revista MIX deste fim de semana e que, em 1976, pintou o mural que decora o Salão Imembuí, na reitoria da UFSM, demorou para que ela fosse alvo de estudos mais aprofundados.

Fonseca, o cartunista Jorge Ubiratã da Silva Lopes, o Byrata, e o jornalista Chico Sosa estão entre as pessoas que foram revirar arquivos à procura da origem da narrativa literária.

– Em 1942, Getulio Schilling escreveu a biografia de Cezimbra Jacques e apontou, pela primeira vez, essa possibilidade de que a lenda era puramente literária. Como eu tinha oportunidade de montar um projeto por meio da universidade, nós fizemos uma revisão de toda a bibliografia relacionada à tradição oral e ao folclore do Estado. Não há registro algum do drama, muito menos do nome Imembuí – afirma Orlando.

No livro Cezimbra Jacques – O Precursor (1986), Schilling diz que a história que João Belém apresenta nas cinco páginas de seu livro nada mais era do que uma síntese da que Jacques escreveu em 29 páginas, décadas antes. O pesquisador acredita que foi por conta da transformação da história em lenda que o parque que existia no antigo Prado foi transferido para onde hoje está o Parque Itaimbé, onde ficava o arroio que foi o principal cenário da trama de Jacques.

Fonseca coordenou uma pesquisa sobre a lenda junto ao Mestrado em Letras da UFSM, entre 1999 e 2001.

– Buscávamos uma referência anterior ao livro Assuntos do Rio Grande do Sul, para estabelecer a origem popular e oral da “lenda”. Nada foi encontrado, nem em documentos de Santa Maria, nem em antologias sobre narrativas populares do nosso Estado. Cezimbra Jacques era assíduo articulista do jornal A Federação, de concepção positivista, e foi neste periódico que ele publicou pela primeira vez o seu conto indígena, em 13 de julho de 1910. Então, na realidade, essa história tem 102 anos – explica o professor, que lamenta Cezimbra Jacques ter sido esquecido como autor do conto.

Jacques morreu em 1922, em completo esquecimento. Apesar disso, ele foi o primeiro escritor de Santa Maria – publicou a obra Ensaio sobre os costumes do Rio Grande em 1883 –, além de ser um dos fundadores da Academia Rio-Grandense de Letras e precursor do cultivo aos costumes gauchescos, sendo atualmente o patrono do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).

Para Zanatta, que tem Cezimbra Jacques como patrono da cadeira que ocupa na Academia Santa-Mariense de Letras, escrever o livro infantil buscando conscientizar desde as novas gerações sobre a origem do conto é uma forma de fazer justiça ao autor da história da índia Imembuí.

– Independentemente da origem da história, ela traz um simbolismo muito forte ligado à cidade. É importante que as crianças possam conhecer a Lenda de Imembuí e saber quem a escreveu – diz Zanatta.

Em 2000, quando o livro de João Belém foi reeditado pela Editora da UFSM, ele teve o acréscimo de uma apresentação, feita pela professora Ieda Gutfreind. Ela fala sobre o modelo de apresentação das histórias municipais, que geralmente segue uma ordem: “da lenda passa-se à descrição geográfica com ênfase aos tratados de limites, sempre com provas documentais, dentre estas, trechos de diários de demarcadores e mapas. Do meio físico volta-se para o estudo do homem, as certidões de batismo e os registros de casamento, que balizam a verdade histórica da sociedade”.

Para o professor do departamento de História da UFSM, Vitor Biasoli, Belém pode ter transformado o conto em lenda para seguir essa narrativa:

– Para isso, precisava de uma lenda sobre a origem de Santa Maria e viu essa oportunidade no texto de Cezimbra Jacques. Mas o que existem são suposições. No fim das contas, o motivo pelo qual ele fez isso é um mistério – diz Biasoli.

Obras contém semelhançasJoão Belém apresenta o capítulo com a narrativa sobre Imembuí com o título Santa Maria Lendária, enquanto Jacques apresentava a história como Imembuy – Conto Indígena. As duas versões apresentam diversas semelhanças. Entre elas, Belém comete uma impropriedade histórica que também havia aparecido no original de Jacques. Ambos falam de bandeirantes que regressavam da Colônia de Sacramento, no Rio da Prata. Porém, o último embate entre indígenas e bandeirantes no Estado teria acontecido em 1640. Já a Colônia de Sacramento foi fundada em 1680, o que distancia os dois momentos históricos em cerca de quatro décadas.

Desde a década de 80, Chico Sosa pesquisa sobre a Lenda de Imembuí para a confecção de um álbum em quadrinhos com o cartunista Byrata. Na época, os dois editavam a revista Nativismo – a primeira a circular em todo o Estado só com matérias de cultura gaúcha – e conheciam a importância do estudo de Jacques.

– Muita gente não dava importância a ele porque era um autodidata. Não era ligado à academia – afirma Sosa.

Quando recebeu a proposta de fazer os textos para a revista em quadrinhos – que ainda não foi lançada –, Sosa começou a estudar a história dos índios do Rio Grande do Sul, para saber mais sobre os tapes e minuanos.

– Fui descobrindo que a lenda não tinha aspecto de lenda. Ela tinha estilo de conto, pois não tinha elemento sobrenatural ou de fábula. Quando li o livro do Schilling, as coisas começaram a fazer mais sentido – conta Sosa.

Devido à importância do trabalho de Cezimbra Jacques, Sosa chegou a protocolar um pedido na Câmara de Vereadores para que a Avenida Liberdade mudasse seu nome para o do escritor santa-mariense. A ideia foi aceita em parte. A avenida manteve o mesmo nome, mas foi criado o Largo Cezimbra Jacques, em frente ao Regimento Mallet.

Produções têm recontado a históriaAo longo de suas pesquisas, o jornalista Chico Sosa e o professor Orlando Fonseca acabaram trocando muitas informações. Em 2008, essa parceria ganhou vida em uma montagem com ares de superprodução. Escrito por Orlando Fonseca em 1994 e musicado por Otávio Segala, o Musical Imembuy foi apresentado no Theatro Treze de Maio, durante a programação dos 150 anos da cidade e com financiamento de R$ 100 mil pela Lei Rouanet. A direção geral do espetáculo – que contou com 40 artistas que cantaram e dançaram o conto sobre o nascimento de Santa Maria – foi do jornalista e professor do Centro Universitário Franciscano (Unifra) Bebeto Badke. O grupo Cuíca e as vozes de Gisele Guimarães, Maninho Pinheiro, Pedro Ribas, Deborah Rosa e Pirisca Grecco entoaram a história de Imembuy, embalada pelos acordes dos músicos Edgar Sleifer, Felipe Álvares, Jair Medeiros, Rafael Bisogno, Tuny Brum, Zé Everton e Ricardo Freire. Completando a montagem, Chico Sosa encarnou Cezimbra Jacques, costurando a narrativa da história.

No Carnaval do ano passado, a escola de samba porto-alegrense Imperadores do Samba levou para a passarela do Complexo Cultural do Porto Seco, na Capital, a história de Santa Maria, com destaque para lenda, ficando em terceiro lugar entre as concorrentes.

Em dezembro de 2011, artistas – vindos de Portugal, da Argentina, do Uruguai e do Brasil – participaram do 1º Encontro Internacional de Escultores de Santa Maria. Eles tiveram como tema para suas esculturas, feitas em pedra, a Lenda de Imembuí. A intenção da Secretaria de Cultura é levá-las para um espaço que ainda será criado, chamado Alameda das Esculturas, no espaço entre a Avenida Presidente Vargas e a Rua Professor Teixeira, no trecho que vai da Barão do Triunfo a Conde de Porto Alegre.

Seja qual for a origem da história do amor entre Imembuí e Morotin, o romance até hoje está intimamente ligado à memória de Santa Maria. Mesmo passados cem anos de sua publicação em livro, a sua simbologia continua forte. Se Cezimbra Jacques não resistiu à publicação da criação supostamente literária, e João Belém gostou tanto dela a ponto de aperfeiçoá-la em linguagem, não será um século depois que ela cairá no esquecimento.

marilice.daronco@diariosm.com.br
MARILICE DARONCO
 As duas versões da lenda




1912 – Cezimbra Jaques publica o conto no livro Assuntos do Rio Grande do Sul, deixando claro que é uma obra ficcional
1933 – João Belém publica a história como se fosse a origem lendária da cidade, na obra História do Município de Santa Maria

 As tribos tapes e minuanos viviam em paz no que chamavam de Terra da Alegria. Uma manhã, seus guerreiros avisaram que um numeroso grupo de brancos se aproximava. Seriam bandeirantes retornando da Colônia do Sacramento. Os bandeirantes teriam tentado fazer os índios escravos, mas eles usaram cavalos e acabaram matando alguns homens brancos e aprisionar dois inimigos. Um deles foi posto em liberdade, para levar a mensagem de que os índios não seriam escravizados. O outro, chamado Rodrigues, foi condenado à morte. Imembuí se apaixonou pelo homem branco. Ela pediu ao seu pai autorização para se casar com Rodrigues e afirmou ao pai que, se ele fosse morto, ela morreria junto ao homem branco

Rodrigues passou a viver entre os índios com o nome de Morotin. Ele amou Imembuí, que salvou sua vida, com tanta intensidade que trocou a procura por ouro pela felicidade de um amor tranquilo. Os dois se casaram e tiveram um filho chamado José

 Pinturas 01


 Pinturas 02

Em 1976, Eduardo Trevisan fez painel na reitoria da UFSM, no qual resgata o conto que traz a história de Imembuí e desenhou, nos anos 50, a lenda



Pinturas 03

Fonte: http://www.clicrbs.com.br/dsm/rs/impressa/4,1304,3761822,19628


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